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testemunho de Manuel Graça Dias
11.03.2013
Manuel Vicente, Arquitecto (08-12-1934 - 09-03-2013)

Pedem-me umas palavras sobre o Arquitecto Manuel Vicente. São sempre momentos absurdos, estes, quando, quem se julga mais indicado para lembrar ou dar a conhecer uma determinada personalidade que nos desaparece, será, provavelmente, quem estará mais tolhido, desorientado e aparvalhado para o fazer.

Fui muito amigo do Arquitecto Manuel Vicente. Foi ele que me fez abraçar definitiva e apaixonadamente a Arquitectura, em 1976, nas aulas da ESBAL (quando nos conhecemos), apesar de, então, eu já ir com cinco anos de curso. Ensinar, para Manuel Vicente, era, sobretudo, um exercício à vista, no qual as questões que lançava surgiam totalmente em aberto, sem nada nas mangas que não a vontade de discutir problemáticas dentro (mas também fora), de um campo “artístico” que não tinha nenhuma espécie de pudor em nos enunciar. Trouxe-nos a confirmação da possibilidade de entender as coisas de outros modos. Eram, sobretudo, oportunidades de nos ir conquistando pensamento arquitectónico, para continuar, depois, a posicionar-nos dúvidas, contra argumentos, ilustrando a não resignação e a suspeita poética com o seu discurso rico, cheio, poderoso porque intencional.

Foi a trabalhar com ele, em Macau que comecei, verdadeiramente, a entender os limites da disciplina, a ética da profissão, o valor da interrogação, as possibilidades do desenho, o significado e a economia do projecto; também o desejo de forma, de construção e de completude. O uso do espaço ao serviço dos outros e o uso da imaginação, das ideias e da memória, ao serviço da cidade. Foi através dele que me relacionei com menos “culpa” com a vida, com ele deixei mais espaço ao desejo. Passámos noites parados no carro, a olhar a cidade e a discutir novas possibilidades, ou em obscuros restaurantes de Macau, à volta de bifes e ovos estrelados, à procura de sentidos, significados e caminhos para a origem das coisas, para a organização das coisas, como adolescentes rebeldes nas aulas de Filosofia. Manuel Vicente acreditava que o “caos” era uma ordem ainda não compreendida, significada, revelada, e que cada oportunidade de construir nesse “caos”, deveria poder saber contribuir, sobretudo, para a sua clarificação, no pretexto de se afirmar.

Depois dos meus três anos de Macau com Manuel Vicente, a minha inteligência das coisas nunca mais deixou de se lhe referir. Quando eu tinha dúvidas, angústias e interrogações (muitas no estrito campo da arquitectura, claro, mas também outras, dos outros lados da vida), compartilhavamo-las; e eu saía mais rico, sempre, mesmo que tivesse que voltar atrás. A sua paixão pela arquitectura, pela arte, pelo cinema, pela poesia, pela comida, mas também pelos objectos anónimos (pela produção humana, enfim), e pelo mundo, mais o tão aguçado pensamento crítico, a capacidade de receber, ler e transformar as impressões que o exterior lhe trazia, o imenso inconformismo e a obstinada vontade de questionar as “verdades” do pensamento corrente, tocavam sempre o nervo das questões, seguravam sempre o essencial, produziam sempre a reflexão precisa de que cada problema precisava.

Quando as coisas lhe pareciam correr mal, lhe pareciam seguir por caminhos mais tortos, mesquinhos e pouco exaltantes, acreditava no confronto com o outro ou com os outros; nunca calava para dentro uma ideia socialmente incómoda, verdades mais inconvenientes; tomava a iniciativa de cartas, de encontros, de telefonemas, de mails. Procurava o esclarecimento, debatia, argumentava e desmacarava hipocrisias, pequenas ou grandes incongruências, torpezas, trapalhadas. Não deixando nada por dizer, abanava o puritanismo, o golpismo ou tão só a panhonhice ou falta de fibra de quem com ele se relacionava ou cruzava.

É necessário dizer, ainda, para que não fique tudo com o aspecto embrulhado e embaçado que tenho nos olhos enquanto escrevo sem maior nexo que o de compor depressa o esboço urgente que me pedem, que tudo isto surgia constantemente envolto numa enorme alegria. Manuel Vicente, sempre (mas sempre), se ria de tudo: dele, de nós, da seriedade pomposa das coisas menores ou maiores, da mesquinhez política, da miséria das ideias. Para tudo, quase sempre, ia buscar uma história, uma anedota, um chiste, um episódio humorado e apropriado. Era uma maneira ainda séria de nos pôr a pensar de um modo ligeiro, sem o peso da chatice da moral ou da má consciência, abreviando, da metáfora escolhida, a chegada a hipóteses mais desarmantes de possibilidades.

Tudo isto, e mais, e muito mais, e o que os imensos antigos alunos ouviram e questionaram ou o que os tantos arquitectos e colaboradores com quem compartilhou o trabalho e a invenção compreenderam ou o que as muitas diferentes mulheres que amou sentiram ou o que os muitos amigos que o cercavam sofreram, jantaram e riram, será sempre pequeno testemunho, será sempre, só, um resumo de parte, uma coisa tosca; que almas assim tão grandes, influentes, exaltantes, excessivas, não se podem resumir.

Recordar-lhe-ei muito a rapidez fulgurante da leitura diferente das coisas. O fascínio constante pela acumulação; os “sentidos ocultos” que sempre extraía da cidade amontoada, das coisas aparentemente insignificantes ou banais, da cidade densa, da cidade que também, a partir de qualquer pretexto, contribuiu para densificar. Produziu uma arquitectura carregada, relacionada, uma arquitectura a olhar para os lados, para cima, para a frente, para o que já existia; para o que, aceitando, tentava depois melhorar, completar, significar. Se tudo lhe podia servir de pretexto para iniciar uma nova reflexão, tudo nele era total e complexo e a sua Arquitectura aí está para o mostrar. Uma arquitectura para acomodar a vida, estranha e imprevisível como a vida, um retrato da vida.

É “suja”, misturada, inesperada, nos sinais que recolheu, e a sua beleza aparece na economia de se completar num todo, na enorme coerência temática em que se envolve e na vontade de criar espaço significante do qual, depois, os outros, se possam apropriar.

Se a sua obra é pouco conhecida, não é só porque maioritariamente se situa em Macau, afastada das publicações mais mediáticas ou glamourosas; é porque foi, grande parte dela, sendo escondida, tapada e submergida pela existência em volta a que tão generosamente se entregou, à partida, resignificada pelo uso das pessoas a quem foi sendo destinada. Estruturas que, afinal, Manuel Vicente inventou e cedeu para que viessem a ser imprevisivelmente transformadas, acrescentando-se à maravilhosa e colectiva construção urbana que tanto sempre o fascinou.

Manuel Graça Dias
Lisboa, 2013-03-10

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